quinta-feira, 23 de julho de 2015

DIVAS DA LITERATURA - Martha Medeiros e Lya Luft

FELICIDADE REALISTA - Martha Medeiros

"A princípio, bastaria ter saúde, dinheiro e amor,
o que já é um pacote louvável,
mas nossos desejos são ainda mais complexos.

Não basta que a gente esteja sem febre:
queremos, além de saúde, ser magérrimos,
sarados, irresistíveis.

Dinheiro?
Não basta termos para pagar o aluguel,
a comida e o cinema:
queremos a piscina olímpica e uma temporada num Spa
cinco estrelas.

E quanto ao amor?
Ah, o amor... não basta termos alguém
com quem podemos conversar,
dividir uma pizza e fazer sexo de vez em quando.

Isso é pensar pequeno:
queremos AMOR, todinho maiúsculo.

Queremos estar visceralmente apaixonados,
queremos ser surpreendidos
por declarações e presentes inesperados,
queremos jantar à luz de velas de segunda a domingo,
queremos sexo selvagem e diário,
queremos ser felizes assim e não de outro jeito.
É o que dá ver tanta televisão.

Simplesmente esquecemos de tentar ser felizes de uma
forma mais realista.

Ter um parceiro constante, pode ou não,
ser sinônimo de felicidade.

Você pode ser feliz solteiro,
feliz com uns romances ocasionais,
feliz com um parceiro, feliz sem nenhum.

Não existe amor minúsculo, principalmente
quando se trata de amor-próprio.

Dinheiro é uma benção.
Quem tem, precisa aproveitá-lo, gastá-lo, usufruí-lo.
Não perder tempo juntando, juntando, juntando.

Apenas o suficiente para se sentir seguro,
mas não aprisionado.

E se a gente tem pouco,
é com este pouco que vai tentar segurar a onda,
buscando coisas que saiam de graça, como um pouco de humor,
um pouco de fé e um pouco de criatividade.

Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível
e aceitar o improvável.

Fazer exercícios sem almejar passarelas,
trabalhar sem almejar o estrelato,
amar sem almejar o eterno.

Olhe para o relógio: hora de acordar.

É importante pensar-se ao extremo,
buscar lá dentro o que nos mobiliza,
instiga e conduz mas sem exigir-se desumanamente.

A vida não é um jogo onde só quem testa seus limites
é que leva o prêmio.
Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade.

Se a meta está alta demais, reduza-a.
Se você não está de acordo com as regras, demita-se.

Invente seu próprio jogo.
Faça o que for necessário para ser feliz.

Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples,
você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber
 sua simplicidade.

Ela transmite paz e não sentimentos fortes,
que nos atormenta e provoca inquietude no nosso coração.

Isso pode ser alegria, paixão, entusiasmo, mas, não é felicidade!


REINVENTAR-SE - Lya Luft


Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos. 

Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido. 

Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!"
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

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